A vida, segundo Kierkegaard

'A vida só pode ser compreendida se olharmos para trás, mas deve ser vivida para frente...'
Diários, Soren Kierkegaard.

sábado, 30 de maio de 2009

Venha para casa - Primeira parte

Hello world
Hope you’re listening
Forgive me if I’m young
For speaking out turn
Olá mundo
Espero que esteja escutando
Me perdoe se eu sou novo
Para falar de vez

Os pingos d’água caíam desordenados como prenúncio para uma longa noite de tempestade. Aquele sereno manso no meio da tarde tornava o clima parado, e a maioria das pessoas ficava dentro de casa, apenas sentindo o arrepio com cheiro de chuva por baixos das cobertas.
Ele ainda vestia seu pijama com uma gravura de um seriado famoso na televisão, quando uma visita lhe apareceu. Ele sabia, só podia ser ela. E pelo horário, havia fugido mais uma vez da escola para ir até sua casa. Quantas vezes já não havia dito para que ela não fizesse aquilo, pois poderia ser apanhada. Mas ela nem parecia lhe escutar. Como uma garoa mimada, que não gosta de receber ordens. Não estava interessada em ouvir lições de moral do namorado mais velho, e chegava a discutir por causa daquilo. Porém, ela sabia exatamente como convencê-lo a esquecer tudo e sempre terminavam entre carícias e afagos.
Ele tentava, mas não conseguia negar que gostasse daquele seu jeito. Sentia-se até meio especial todas as vezes em que ela fugia para vê-lo. Quando abriu a porta, logo viu o uniforme azul-escuro com detalhes brancos que ela vestia. Um pouco molhado, impregnara em seu corpo, marcando as curvas bem feitas. Os seios subiam e desciam dentro dele, revelando uma respiração ofegante. Trazia consigo aquele velho guarda-chuva preto, enorme, o mesmo que ela usava quando a viu pela primeira vez.
— Entra – ele disse, depois de um segundo observando a expressão apática no rosto da garota.
— Prefiro ficar aqui fora – ela disse num tom baixo, entre palavras miúdas.
— Mas está chovendo, você pode acabar pegando um resfriado – ele tentou fitá-la, mas ela desviava o olhar para o final da rua, em algum ponto distante e sem importância.
— Você sabe que nunca liguei para o resfriado. E sabe também o quanto venero a chuva.
— Mas ela sempre te deixa triste.
Aquilo, ele não entendia. Como se ela pedisse para ficar triste, e gostasse daquilo. E afinal, o que tinha na chuva para deixá-la daquela forma?
— Não estou triste. Estou apenas sentindo. Há coisas que não consigo explicar, e esta é uma delas.

There’s someone I’ve been missing
I think that they could be
The better half of me
Ali está alguém que eu tenho feito falta
Eu penso que poderiam ser
A metade melhor de mim

Ele não sabia, mas naquele momento ela lhe pedia um abraço. Aquele olhar em lugar nenhum, com certeza queria um afago, um consolo sequer. Mas ele não podia adivinhar. Já conseguira aprender a ler os olhos dela, suas expressões de raiva ou desgosto lhe eram facilmente reconhecidas, mas a falta deles ainda era um mistério. E o ponto distante no final da rua ainda parecia interessante para os olhos da garota.
Naquele momento, ele se sentia impotente. Uma espécie de medo lhe tomara conta, como se ao possuí-la, o simples fato de tocá-la fora lhe ferir de alguma forma. Não sabendo como agir, falava sobre assuntos que não importava a nenhum dos dois. E por mais que ela o escutasse gentilmente, ele mesmo não estava feliz com aquela situação. Não sabia como ajudá-la, nem se ela precisava realmente de ajuda.
Quando tinham chegado àquela situação? Desde quando falavam sobre assuntos banais em seus encontros, como se mal se conhecessem? Desde quando haviam se tornado estranhos?
— Estou indo embora – ela disse, despedindo-se.
Ele fechou a porta atrás de si. E por mais que ele soubesse que ela estava apenas indo para casa, sentiu como se aquela despedida fosse para sempre.

They’re in their place trying to make it right
But I’m tired of justifying
So I’ll say to you…
Estão em meu próprio lugar tentando fazer direito
Mas eu estou cansado da justificação
Então eu digo que você...

Ele podia lembrar com detalhes a forma como se conheceram, um ano atrás.
E mais uma vez, chovia.

Da janela do segundo andar da faculdade, ele observava enquanto as pessoas corriam, fugindo dos pingos d’água que começaram a cair de repente, de forma forte, que chegava a assustar. No momento seguinte, a rua se esvaziara. O vazio de uma manhã de chuva reinava mais uma vez, e ele sentiu uma ligeira ociosidade. Aquela chuva no meio do dia era sempre perturbadora. Mas para sua surpresa, ao olhar novamente para a rua deserta, viu uma figura andar calmamente entre as poças de água, segurando um enorme guarda-chuva preto. Pela leveza de seus passos, parecia não saber para onde ir. Ou simplesmente não ia a lugar nenhum, pois já havia chegado onde queria.
Mas naquele ponto não havia nada além das torrentes e das poças d’água. Afinal, a presença daquela garota ali, no meio da rua deserta, deixou-lhe intrigado.
“Quem era ela? E o que fazia ali?” Eram as perguntas que se formavam em sua cabeça. E no minuto seguinte, como se respondendo a ele, ela largou o guarda-chuva, que caiu no chão de repente. O barulho da queda fora abafado pela chuva. Porém, aquele guarda-chuva caído ali não foi o que lhe fez parar por alguns segundos. E sim, a visão do rosto da garota retorcido para cima, de olhos fechados, apenas sentindo os pingos de água que lhe caíam, lavando todas as impurezas de seu último ano de adolescência.
Ele não sabia explicar, mas aquilo lhe irrompeu uma incrível sensação dentro do peito que parecia querer pular para fora da camisa, fazendo-o mover as pernas e quando ele viu, estava correndo até as escadas. Desceu-as rapidamente, sem prestar atenção às outras pessoas que passavam. Um êxtase lhe dominava por ele estar cada vez mais perto da saída. Finalmente, chegou à rua e parou a corrida de supetão. O primeiro pingo que caiu em seu rosto pareceu nortear sua visão para um único ponto: exatamente onde a garota estava minutos antes.
Mas agora, apenas o guarda-chuva se encontrava ali.

Come home
Come home
Cause I’ve been waiting for you
Venha para casa
Venha para casa
Por que eu estou esperando por você

Ele sorriu pela lembrança. A história deles era muito maior que aquilo, mas simplesmente pensar naquele dia lhe trazia felicidade. E sentado ali, encostado à porta por onde ela nem chegara a entrar, ele sentiu a falta que lhe fazia o seu sorriso.

For so long
For so long
And right now there’s a war between the vanities
Durante tanto tempo
Durante tanto tempo
E agora há uma guerra entre a vaidade

Do lado de fora, uma lágrima misturou-se aos pingos de chuva que rolavam no rosto da garota. Era seu último ano de colegial, e logo estaria na faculdade. Aquele ano seria uma única etapa, a mais decisiva, que ela teria que ultrapassar sem deixar vestígios. Não havia perdão para o erro, e tudo se confundia em sua mente. Sentia-se pressionada e cheia de dúvidas.
E era exatamente a dúvida que a fazia hesitar nos momentos mais importantes. Por um momento, pensou em quantas vezes não havia deixado o medo lhe dominar, impedido-a de fazer suas escolhas.
Será que ao menos uma vez, não poderia ser diferente?
Ouviu passos rápidos seguindo na direção contrária. Surpreendeu-se ao ver que eram os seus próprios. Estava voltando, e daquela vez, nada importava. Nenhuma dúvida lhe faria tremer o coração, e ela saberia roubar o que precisava. Bateu violentamente contra a porta, como se sua vida dependesse daquilo. Do outro lado, um sorriso se formou no rosto do garoto. Levantou-se num impulso e abriu a porta. Por um segundo, eles apenas se olharam. A expressão de surpresa bem delineada no rosto de ambos. Foram os segundos mais demorados da vida da garota, que não voltaria atrás e roubaria seu abraço. Largou o guarda-chuva no chão, pois a chuva já não importava.
E ela o abraçou.

But all I see is you and me
The fight for you is all I’ve ever known
So come home
Mas tudo que eu vi é eu e você
Lutar por você é tudo que eu sempre soube
Então venha para casa

Um abraço. Pensou ele, ainda agarrado àquele corpo que parecia encaixar perfeitamente ao seu num contato firme, desesperado. Apenas um abraço.
Era incrível o que aquele gesto significava para eles: simplesmente tudo. Dizia perdão, confiança, certeza, e principalmente, dizia que eles se amavam.

I get lost in the beauty
Of everything I see
The world ain’t as half as bad
As they paint it to be
Eu estou perdido na beleza
De tudo que eu vejo
O mundo não é tão mau
Como o pintam para ser

Ele puxou-a ainda mais para dentro de casa, pois a chuva havia aumentado violentamente, e ele teve que fechar a porta. Sentaram-se no sofá e nada disseram. O mais interessante é que não havia o que dizer. Aquele silêncio mostrava o quanto estavam habituados um ao outro, e o quanto podiam ficar ali, calados, apenas acariciando-se, e seria a conversa mais sincera de tantos tempos.
— Não quero te ver triste – ele disse, quebrando o vazio.
Ela deu um sorriso contido, mas de forma agradável. Depois, falou:
— Estou feliz agora.

If all the sons
If all the daughters
Stopped to make it in
Well hopefully the hate subsides and the love can begin
Se todos os filhos
Se todas as filhas
Parassem para compreender isso
Bem esperançosos o ódio diminuísse e o amor poderia começar


Ele olhou para o rosto dela mais uma vez, depois afastou uma mecha de cabelo que descia pela face molhada e enxugou uma última lágrima que ainda pendia pesarosa. E então, aproximando-se devagar, beijou seus lábios. Há muito não se beijavam daquela forma apaixonada. Seus beijos haviam se tornado mera rotina. Mas naquele dia, o contato se intensificava cada vez mais, e eles podiam sentir o êxtase em seus corpos.
No momento seguinte, estavam grudados um ao outro. Um desejo forte lhes subia ao pensamento, e eles já não podiam pensar por si. Os beijos continuavam cada vez mais lascivos. A mão da garota começou a subir por baixo da blusa do garoto, levantando-a, e ele a retirou em seguida. Ela o admirou por alguns segundos, mas logo o contato recomeçou. Ansioso, ele avançou por cima dela e a deitou no sofá. Estavam cada vez mais entregues.
Há muito ele desejava aquele momento. Jamais haviam chegado àquele ponto, e ele sentia que aquela era a hora. Sabia da responsabilidade de ser o primeiro para a garota, mas aquilo não era empecilho. Pelo contrário, tinha certeza que ela era totalmente dele.
Totalmente minha. Ele repetiu, para não esquecer.
E sabia, ela jamais esqueceria.

It might start now
Well maybe I’m just dreaming out loud
Until then
Come home
Poder começar agora
Bem, talvez eu apenas esteja voando alto
Até lá
Venha para casa

About Me

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Estudante de Direito, Escritora nos momentos de melancolia, melhor amiga nos momentos de felicidade e flamenguista sofredora.