A vida, segundo Kierkegaard

'A vida só pode ser compreendida se olharmos para trás, mas deve ser vivida para frente...'
Diários, Soren Kierkegaard.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009


Aconteceu em meados de 1920.


Os últimos pingos de água ainda caíam sob terra, mas Max não esperaria mais tempo para sair de casa. Durante a chuva, estivera chateado por não poder sair para brincar com seus amigos, ou mesmo banhar na bica que era formada entre as curvas dos telhados, onde alguns garotos amontoavam-se numa pequena profusão de corpos encharcados.


Pelas frestas da janela, observava as outras crianças correrem pela rua quase deserta, e sujarem-se nas poças de água, que por causa do terreno declínio, alinhavam uma pequena correnteza, misturada ao barro que cobria parte do local. Uma bicicleta parou em frente á casa de Max. Seu pai, que era pescador, havia chegado de um dia inteiro de trabalho. A chuva lhe acompanhara durante todo o percurso para casa. As roupas molhadas davam-lhe um ar ainda mais enfastiado.


O garoto abriu rapidamente a porta para o pai, que entrou batendo os pés num pano que servia de tapete. Mas havia algo estranho no olhar de seu pai, percebera Max. Debaixo da blusa, enrolado em um saco plástico, o pescador retirou alguns jornais velhos que ele havia colhido enquanto trabalhava. Geralmente serviam para embalar os peixes, mas naquele dia o pai do garoto pediu a ele que escolhesse algum, pois ele lhe ensinaria a fazer barquinhos de papel. O garoto escolheu um que trazia como manchete, a foto de um grande navio da marinha.


Como tantas outras coisas, Max logo aprendera, apenas observando as mãos calejadas do pai que dobravam levemente o papel. Vários barquinhos foram feitos, e logo que a chuva cessou, o garoto correu porta a fora. Não podia perder nenhuma poça que fora formada, e a correnteza levava os barquinhos para bem longe. Mas Max não perdia de vista nenhum sequer. Controlava todos os seus barquinhos, e via-os como grandes navios de guerra. Apenas um dos barquinhos fugiu do controle de Max. O que havia sido feito por seu pai. Arrastou-se vários metros, enfrentando obstáculos e seguindo em frente. O garoto corria descalço atrás dele. Mas o barquinho já percorrera tantas curvas, e já estava tão longe, que Max não podia mais vê-lo.

E ninguém mais viu Max.

Anos haviam se passado, e era talvez 1934.

As cores mesclaram-se formando um pôr-do-sol. Aquele fim de dia, em que nada dera certo. A única coisa que lhe restava, era sentir o breve arrepio que tomava conta do corpo sempre que anoitecia. Nunca fora de pensar muito, costumava agir por impulso, mas naquela situação ele já não era ele mesmo. Não fazia as mesmas coisas, não se alimentava normalmente, sua rotina havia desmoronado anos atrás.


Desde o dia em que seu filho desaparecera, ele não tinha feito tantas coisas além de olhar o pôr-do-sol que entrava pela janela e refletia na porta por onde algum dia seu primogênito voltaria a entrar. O som de uma sirene invadia-lhe os pensamentos. Entre vários ruídos, a voz aparentemente condoída de um policial, dizia-lhe as palavras que ele mais temia.

“Sinto muito Sr. Müller, procuramos em todos os lugares.”

Cada pedaço de lembrança desta pequena frase cortava-lhe ainda mais o coração.

“Ele queria ser marinheiro.”

O pescador lembrou-se das próprias palavras. Havia repetido-as freneticamente durante meses, sempre com a mesma cena na cabeça. A de vários barquinhos afogados na lama barrenta, sem ninguém a vigiá-los.
O ano era 1940.
Numa vila de pescadores da Inglaterra, reuniam-se vários barcos para evacuar os soldados ingleses que se encontravam em Dunquerque, ao norte da França. O Sr. Müller, navegou junto aos outros em humildes traineiras já muito gastas. O percurso era grande para as pequenas embarcações e ainda corriam o risco de serem surpreendidos por marinheiros nazistas. Ainda assim, não desistiriam. Vários soldados amontoaram-se na traineira do Sr. Müller, que não esperou pelos outros, e rumou à Inglaterra o mais rápido que pôde. Não gostava de estar longe de casa. Cada vez que saía dela, tinha a sensação de que seu filho voltaria e ele não estaria lá para recebê-lo.
Navegavam tranquilamente por algum tempo, mas não viram quem se aproximava. Um navio da marinha nazista. O Sr. Müller não poderia morrer agora, não sem antes ver por uma última vez seu filho que ele tinha certeza que voltaria. Dentro do grande navio, o comandante foi avisado sobre a embarcação, que provavelmente transportava soldados ingleses para alguma vila de pescadores. Os marinheiros precisavam de suas ordens para atacar. O comandante visualizou o pequeno barquinho de papel desgastado pelo tempo, para só então, dar as ordens.
“Nenhuma traineira será atacada.”
O marinheiro, sem entender a decisão, retrucou:
"Mas comandante, o que devo dizer aos marinheiros?”
Diga que são as ordens do comandante Max Müller.”

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

O trem - Parte II


Talvez seja ainda maior.


Ao percorrer vários quilômetros pelos trilhos gastos pelo tempo, uma nova sensação nos toma conta.Não sabemos ao certo, mas ela sempre esteve ali, guardada, esperando a hora certa para se revelar.Um misto de prazer, nostalgia e medo. Medo de perder aquele momento. Medo de que ele nunca mais volte a acontecer. Este novo sentimento, diz-nos que uma hora temos que parar em alguma estação.Simplesmente percorrer o globo já não basta. Chega de procurar um lugar certo, pois ele está bem à sua frente.O mais irônico, é que talvez eu já tenha passado por ele em outras viagens, e sequer tenha percebido sua profusão.Sentimentos, cores, luzes, reflexos, e outras coisas fugazes, mas que me preenchem, e eu nunca os havia imaginado.


Logo na próxima estação

Talvez alguém esteja me esperando

About Me

Minha foto
Estudante de Direito, Escritora nos momentos de melancolia, melhor amiga nos momentos de felicidade e flamenguista sofredora.